15 de ago. de 2010

Roda Viva.

 ESSA MÚSICA RETRATA BEM MEU ESTADO DE ESPÍRITO HOJE...


Tem dias que a gente se sente
Como quem partiu ou morreu
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo então que cresceu
A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mais eis que chega a roda-viva
E carrega o destino pra lá
Roda mundo, roda-gigante
Roda-moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração

A gente vai contra a corrente
Até não poder resistir
No volta do barco é que sente
O quanto deixou de cumprir
Faz tempo que a gente cultiva
A mais linda roseira que há
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega a roseira pra lá

Roda mundo, roda-gigante
Roda-moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração

A roda da saia, a mulata
Não quer mais rodar, não senhor
Não posso fazer serenata
A roda de samba acabou
A gente toma a iniciativa
Viola na rua, a cantar
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega a viola pra lá

Roda mundo, roda-gigante
Roda-moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração

O samba, a viola, a roseira
Um dia a fogueira queimou
Foi tudo ilusão passageira
Que a brisa primeira levou
No peito a saudade cativa
Faz força pro tempo parar
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega a saudade pra lá

Roda mundo, roda-gigante
Roda-moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração

Quem não conhece a canção Roda-viva, de Chico Buarque? Essa letra faz parte da famosíssima peça de mesmo nome, escrita em 1967 e que, um ano depois, sob a direção de José Celso Martinez Corrêa, recebeu montagem à altura, no teatro Oficina. Chico Buarque, que até então era "a única unanimidade brasileira", nas palavras de Millôr Fernandes, chocou parte de seu público com a radicalidade crítica e o tom francamente agressivo da peça.

Mas vamos à letra Roda-viva: ela tem um chão histórico específico, ou seja, os obscuros anos da ditadura. É desse tempo que ela data e é o que esse tempo representou para a experiência brasileira que ela aborda e cifra. Eu falei em "cifra"? Sim, a palavra cifra tem, além da acepção comercial que conhecemos, o sentido de explicação de escrita hermética, enigmática, e, por extensão, passa a significar essa própria escrita. Decifrar é justamente tirar a cifra, tornar o texto claro, interpretá-lo. Como dissemos, a composição de Chico se originou em meio ao turbilhão da instauração da ditadura militar no Brasil. Ditadura que representava, para a cultura, simplesmente o fim da liberdade de expressão. Um meio muito utilizado na época (e, de um modo geral, em períodos não democráticos, no Brasil e em outros países) para driblar a censura foi a metáfora, o despistamento, a linguagem figurada, a cifra. Alguns escritores e jornalistas falavam aparentemente de flores e rouxinóis, quando estavam se referindo à situação político-social brasileira.

O que é roda-viva? Roda-viva é, conforme os dicionários, movimento incessante, corrupio, cortado; é ainda confusão, barulho. O texto menciona ações frustradas pela roda-viva.

Na letra a roda-viva está associada à morte, ao contrário do que indica a palavra. A roda ceifa, arranca aquilo que ainda está em desenvolvimento: a gente estancou de repente. A gente parou (de crescer) de repente. Note-se como é expressivo o uso de estancar, que nos faz lembrar imediatamente de sangue. Somos abortados na capacidade de decidir o próprio destino, de adquirir autonomia como um rio é barrado, como um fluxo de sangue é estagnado.

Essa espécie de vendaval arrebata a voz, o destino das pessoas e a capacidade de exprimir artisticamente seu sofrimento:arrebata-lhes ainda a viola . A roda-viva arrebata da gente a roseira há tanto cultivada e que não teve tempo de exibir tudo o que prometia.

A composição é cortada por dois movimentos: um expressa a ação empenhada, o trabalho sistemático, o desejo de ser o sujeito da própria história. A esse movimento pertence o querer ter voz ativa, o ir contra a corrente (da roda-viva), o cultivo ininterrupto da rosa, o tocar viola na rua e a saudade de tudo isso (na medida em que a saudade pode ajudar a reorganizar o pensamento e a luta). O outro movimento expressa a ação abortiva exercida pela roda-viva. Esse movimento vem expresso numa frase reiterada: "Mas eis que chega a roda-viva e carrega (o que quer que seja) pra lá". A conjunção "mas" sinaliza justamente essa mudança de direção, sinaliza ação adversa. A frase "eis que chega..." vem sempre ligada na letra a um tipo de estribilho, a uma fórmula aparentemente ingênua, que lembra as cantigas de roda: "roda mundo, roda gigante/ roda-moinho, roda pião/ o tempo rodou num instante nas voltas do meu coração". Essa fórmula, inocente na aparência, dado seu teor caótico e quase surrealista (típico de enigmas, cantigas de ninar etc.) e a referência a brinquedos infantis (roda-gigante, pião), tem o efeito de exprimir um desnorteio, uma situação absurda, fora do esquadro. De fato, não é possível conceber a ditadura como algo natural. Ela não pertence à ordem da razão.

Esses movimentos descritos na letra são, portanto, de trabalho em curso e de sucessiva frustração. Isso descreve muito a experiência brasileira, tanto do ponto de vista social e político como do ponto de vista cultural. Quando estávamos começando a engatinhar na democracia, é instalado o regime totalitário, para o qual não existem indivíduos. Sufoca-se até a saudade (já cativa) de outros tempos.

Mas esse ambiente de tanto mal-estar foi filtrado por Chico Buarque com muita cautela: era preciso despistar a censura, daí a profusão de rodas e de versos encantatórios; era preciso dizer a verdade, daí o tumulto e a sensação de frustração advinda da mesma profusão de rodas, que diríamos serem antes de trator.

FONTE:Site da TVCultura


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Um comentário:

Lua Nova disse...

Que maravilha de análise da letra dessa música que marcou uma época e que é realmente uma obra prima.
A mulecada de hoje não tem muita noção de certas coisas e seu post é uma luz importante.
Parabéns! Um ótimo post.
Um lindo domingo pra vc, minha cara.
Beijos.